quinta-feira, 20 de março de 2008

Do lugar do adversário



Havia motivo de festa naquela manhã. Apesar da gritaria, fanfarrices e deboches desvairados, a cidade permanecia surda a esse verdadeiro redemoinho de demônios concentrado ali. A rotina despontava juntamente com os primeiros raios de sol sobre as pedras que calçavam as ruas, que aos poucos perdiam o brilho do orvalho da madrugada. O dia prometia ser muito quente. A cidade preparava-se para o dia... Com um leve desassossego do que de costume. Soldados romanos, nada de costume, passavam pelas ruas estreitas que conduziam para fora da cidade, como que vistoriando a ordem. Uma criança, saindo de sua casa, corre acompanhando um soldado, mas logo é agarrada por sua mãe que olha a tropa que vem logo atrás. Ela pensa: o que armam esses brutos em véspera do nosso sábado? Os flagelos embora tão comuns, sempre seriam repugnantes e não havia como explicar tais espetáculos de vergonha às crianças.
Em outro lugar, demônios de todos os ministérios estavam avisados do grande acontecimento e em caravanas para lá se dirigiam. Lá, era um lugar como outro, mas como não seria jamais. E iam pervertendo e arruinando a todos que encontrassem, já por conta da grande vitória assegurada.
Os olhos de todas as forças obscuras do cosmos eram voltados para aquele relevo, árido, fora, mas próximo à cidade. Pessoas então, também começam transitar mais do que o normal. Caminhavam para lá. Lá, era um lugar dos espetáculos. Procuravam-se os melhores lugares; na terra ou nos ares. O indefectível desejo mórbido presente nos expectadores. Expectativa. Burburinho solene.
D1 está sentado. A posição, como não poderia deixar de ser, era privilegiada. Está quieto e não pára de pensar; os olhos, no centro de lá. Lembra-se como tudo começou... A morte, convidada especial, sentara-se ao seu lado.
- Desculpe-me, baixeza - interrompeu D2, seu primeiro ministro - está tudo sobre controle. Ele já foi julgado. Em breve, afinal, assumiremos. Judas nem foi tão importante... Ele mesmo se entregou.
D1 não quis dizer, mas pensou: - É isso que me intriga...
D3, D4 e D5 invadem a presença de D1 com gargalhadas escarninhas... - Esse Pilatos é mesmo de morte eim!? Lavar as mãos!... Que idéia! Só mesmo um político - zomba D3.
D4, como um chefe de torcida, instiga o coro: - Barrabás! Barrabás!...
Embriagado de motivação, D5 ironiza: - Vejam só o que estão fazendo com ele! Nem nós faríamos melhor!
D1 não consegue se envolver. Não ri. Só pensa... Só olha.
Percebendo mas não compreendendo a preocupação de D1, D2 retoma o diálogo e o clima sério: - baixeza, já mandei averiguar. Nenhum dos que andavam com ele estão por perto. Não representam ameaça alguma. Nem mesmo o pescador metido a rebelde... Já o negou várias vezes...
- Três! - Corrige gritando D1, transparecendo certo descontrole.
- É verdade! - Emenda D3, quando é duramente reprimido por D2:
- Eu já não disse que essa palavra é proibida em nosso reino?!
- Me perdoe - diz D3 constrangido.
- Ora, isso também não fazemos! Blasfêmia! Você será rebaixado! - Enfurece-se D2.
- D4 lembra: - Não nos percamos... Também adoro um desacordo, mas hoje é dia de festa senhores!
Enquanto isso, a milícia infernal encontra-se impaciente. Fora da presença de D1, todos só imaginam o que será o novo reino de trevas e caos eternos. E D1 só imagina o que pode dar errado...
Ele olha agora, no palco há três colunas de pinheiro oriental, cravadas no solo. A vítima, carregava uma haste e deitam-na sobre esta como se fosse travesseiro. Está banhada em suor e sangue, extenuada. Outras duas gritam e se debatem, alternando o foco de atenção da platéia. O horror é menos pela morte do que pelo morrer.
Afigura-se um quadro pintado por demônios e toda sorte de potestades. Está por um fio a esperança. De repente, um vermelho carmesim, mancha com força a tela; ao mesmo tempo em que um grito lancinante rompe em desespero. Êxtase para o mal. Entretanto, o grito e o sangue aspergido com violência fazem D1 se lembrar, sem saber por que, do dia em que um jovem chamado Isaque seria sacrificado pelo próprio pai.
- Estou profundamente perturbado - pensa - os gritos desse me lembram os gritos daquele jovem... Por que? Por que?
Num estalo, a resposta para uma inteligência superior aos demais séquitos.
- É isso! É isso! - Já em desespero, vocifera D1. Freneticamente irado, levanta-se do seu lugar; e nessa ira já sucumbem milhares de seres inferiores... Ele grita com seus imediatos, e esse grito faz imediatamente tudo se calar:
- Vocês não vêem?! É o pai que sacrifica o próprio filho como em Moriá. Isso será para o nosso fim e não para a nossa glória!
Sem entender muito bem, D2 dá ordens de tentar conter o sacrifício. Desestrutura-se o comando maligno. D3 também não compreende tal paradoxo – inteligências terrenas também não - de como pode haver vitória ante a humilhação, a dor, a morte... Mesmo assim arrisca acalmar D1:
- Lembre-se baixeza que o braço do pai do menino foi contido...
- Ora, seu estúpido - já fumegante D1 diz, sem mais paciência - o que nunca teve mesmo. Explica: - Só o Altíssimo poderia conter o braço enlouquecido da fé daquele pai naquele dia... Agora é o seu próprio braço! Não haverá outra vítima que o possa agradar. Se não o impedirmos será o nosso fim para sempre!
Trovões, vento forte, horizonte precocemente escurecido retratam de maneira visível a batalha invisível que se trava. Legiões inteiras, todas as hostes, desesperadas, ensandecidas, contra um único braço que desce... De poder e amor desce. Incontível...

Um sussurro ensurdecedor se ouve dos lábios do crucificado: - Está consumado.

Um comentário:

Sammis Reachers disse...

Amado irmão, graça e paz.
Foi com felicidade que encontrei seu blog, de grandes conteúdos. Muito bons também os cartuns que você cria.
Mantenho alguns blogs, e desde já estou publicando material seu em dois deles:
No Azul Caudal (http://azulcaudal.blogspot.com), meu blog mais 'pessoal', publico o 'Síndrome do download';
e no Poesia Evangélica (http://www.poesiaevanglica.blogspot.com), publico seu texto 'igreja vã gélica'. Em ambos estou também linkando teu blog.
É mais uma boa opção de conteúdo e opinião na blogosfera. Caso queira trocar links, fique à vontade.

Parabéns pelo trabalho, amado.

Um abraço do irmão
Sammis