quarta-feira, 14 de abril de 2010

O Tatu Claustrofóbico (da Série, Animais Especiais)

Tadeu odiava o escuro. Mas não era o escuro, eram os lugares apertados e com uma única saída. Ao certo, Tadeu não sabia o que lhe incomodava tanto ao ter que entrar num buraco. Tadeu era claustrofóbico, mas não tinha este diagnóstico.
Diziam a ele que acabaria morto por passar tanto tempo fora da toca. Para Tadeu a agonia da morte estava justamente ali dentro. Do psíquico os sintomas passam ao físico e Tadeu começa transpirar dentro da carcaça, as patas ficam trêmulas e o coraçãozinho parece que vai explodir. O medo alimenta o medo e Tadeu sai como uma bala do buraco, o que faz aumentar ainda mais o batimento cardíaco, porém a luz e o ar externos o acalmam.
Devia fazer uma escolha quando os cães dos caçadores estavam por perto: a segurança mórbida do aperto escuro, ou o perigo vivificante da savana aberta. Optava pelo segundo. Isso acabou lhe garantindo um tipo de inteligência estratégica para encarar cães e caçadores. Como possuía uma carapaça óssea, dura e flexível, podia se fechar como se fosse um coco maduro em pequenas moitas, até em meio aos cactos, com as garras para cima. Quando vinha um cachorro, ele o feria no focinho, ponto fraco do inimigo. Sem cão, caçador não é nada – e gatos são muito sublimes para suportar o fedor de um Peba. Assim, despistava-os.
Tadeu era solitário não porque os tatus têm essa fama, mas porque não conseguia conviver nas comunidades subterrâneas. Sonhava um dia encontrar um parceiro com a mesma fobia. Quem sabe uma parceira... Achava na sua ignorância de Tatu-peba, que poderia gerar outros clautrofobicozinhos e, com muito treinamento e aperfeiçoamento de seus estratagemas, outros viriam se juntar ao novo modelo de sobrevivência, sem precisar construir túneis para todo lado e viverem subalternamente subterrâneos.
Seus iguais lhe censuravam: “você não pode fugir da sua natureza! Você foi feito para cavar!”
Tinha que absorver as troças dos outros tatus que em rodinhas ficavam medindo suas garras e competindo quem tirava mais terra em menos tempo. Ao passo que ele examinava as suas unhas cada vez mais atrofiadas por falta de exercícios. O que dava dignidade aos tatus, Tadeu desdenhava.
Tadeu passava horas e horas em meio a uns arbustos, refúgio que ele já se adaptara, quando havia caçador por perto - entenda-se por caçador não exatamente um sujeito bem equipado, botas e espingarda, cara de mau e cães de raça, mas um miserável morto de fome do Cerrado, com facão, pé no chão e vira-latas não menos miseráveis. Ali Tadeu aproveitava para pensar, enquanto deitado de costas, de papo pro ar, olhando o céu. Pensamento de Tatu-peba não vai muito longe, mas Tadeu explorava os seus limites. Pensava o que seriam aquelas coisas brancas, suspensas no ar, que se moviam lentamente mudando de forma a cada piscada de olho e que, por ser míope, a imaginação fluía e o fazia ver, dentro do seu restrito universo, figuras: um teiú; um tatu que vira formiga; uma cabeça de cão; um cateto; uma ave; um tatu de novo... Fica pensando também que passou grande parte da vida sem olhar para o céu. Seus semelhantes entendiam muito de terras e formigas, mas quase nada de pássaros. O seu faro é ótimo e lhe avisa quando deve parar com os pensamentos. Enquanto isso pensa no papo que teve com um Tatu-canastra e porque aquilo lhe ficava martelando. Era meio que proibido para um Tatu-peba a socialização com um Canastra. Para os Pebas o nome já dizia tudo: eram uns canastrões. Dissimulados, se faziam de coitados alegando que sua espécie estava em extinção e, muito embora os Pebas não entendessem muito bem o que isso significava, alguns eram iludidos e sediam suas tocas com muito custo escavadas, para esses tatus gigantes, natos fossadores que arrombavam tais moradias as deixando inabitáveis depois. Sem contar que seus hábitos noturnos fazia piorar sua reputação.
Contudo, para Tadeu, como sua fama entre os Pebas já não era lá essas coisas, trocou umas conversas certo dia com um Tatu-canastra. Aquilo que ficou martelando. O Canastra lhe contou numa noitinha, instante em que os pebas se recolhem, e enquanto degustavam um formigueiro em pânico, que descobriu nos recônditos subterrâneos, coisas indizíveis; sacrilégios.
- Como posso saber se está falando a verdade, se eu não entro por mais de um metro nesses buracos? - Respondeu Tadeu.
- Por baixo não podes, mas por cima vasculhas. – Retrucou o Canastra.
- E aí?
- E aí seu peba, vê se não está cheio de buracos ao entorno do... Do cemitério dos humanos.
- Que barbaridade!

A barbárie era que, segundo o Canastra, os Pebas estariam a comer cadáveres. Embora houvesse mesmo inúmeras tocas no entorno do cemitério, Tadeu não conseguiu provas contundentes, o que também não quis se esforçar para isso. E quando não há provas, há dúvidas. A prova faz cessar as reflexões, a dúvida as fomenta. Por isso, Tadeu passava cada vez mais tempo entre as moitas, pensando, pensando, mesmo quando já não havia mais vira-latas por perto.
Por fim, entre nuvens e cemitérios, passava pela cachola do Tadeu a sua condição de tatu-peba e por que razão tinha aquele medo todo da subterra. Era ele normal e todos os outros anormais desprovidos de medo, o medo que adverte contra absurdos e atrocidades? Por que então não aparece outro tatu, ou tatua, no mundo como ele? – Mundo de tatu é tão somente o seu habitatu, vale dizer.
Tadeu foi ficando cada vez mais isolado e a cada dia perdia mais o contatu com a realidade. Perdendo o medo de cães e caçadores; perdendo a coragem de enfrentar os becos; perdendo o preconceito de se aproximar dos Canastras; perdendo os limites do pensamento... Tadeu se tornou um andarilho, sem garras, de casco queimado, sobrevivendo de restos de cupinzeiros desabitados e raízes secas.
Visto cada vez menos aqui e acolá falando sozinho, algumas vezes gritando e praguejando, xingando de carniceiros a outros Pebas que riam e zombavam dele e os Pebinhas se divertiam jogando-lhe torrões e fazendo um círculo em volta dele até que se desesperasse.

Não possuindo mais dados fidedignos para essa narrativa, este narrador encerra com a última e maldosa informação, de que fora Tadeu adotado por um Tatu-galinha.

3 comentários:

Anônimo disse...

bela fábula tonioli.
senti falta do breu do blog.
ou este teria se tornado o blog do abreu. o q se tratando de vc tonioli, é totalmente anormal.
aliás, o breu faria clima à fábula.
pebas renegados em buracos ou sob o céu noturno...

joão ali

claudiopimenta disse...

Muito lesgal e da legolllll?

wilson tonioli disse...

Valeu Francisco.

abç