segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Um Caso de Transtorno de Pica (V)

Caiane foi quem se aproximou da mesa e disparou: “querem ver meu irmão comer um prendedor de roupas?”. A mãe de Ataíde engasgou-se com o bolo. Dona Almerinda correu pegar um copo d’água. O esposo olhou para o sofá e os meninos se divertiam. Ele também sorri sem jeito. A que estava engasgada, recuperada, diz a Caiane: “Não é preciso...”. Ate depois de muito tempo, os pais de Ataíde não sabiam se por sarcasmo ou por uma exibição costumeira que a irmã falou aquilo. Enfim, de tudo que conversaram e viram naquele dia, pouquíssima coisa restou, quase nada, que pudesse servir de ajuda, senão o cuidado de que a vida é assim e seguirá assim.

Seu Ataíde e Conceição – sim, Gustavinho tinha o mesmo nome do pai e era esse provavelmente o motivo pelo qual o pai não autorizou a mudança do nome sugerido pela tia. Seu Ataíde e Conceição foram levando essa vida já com quase tudo assentado, como se assenta a terra com o tempo, com o sol e com a chuva. Não buscavam mais tantas respostas, mas respostas vêem quando não se as buscam. Olhando para um moço que fazia funcionar e desligar um brinquedo de parque e que possuía um braço atrofiado espetado num tronco exageradamente avantajado, seu Ataíde concluiu que esta era uma boa metáfora para a vida: o parque abre todos os dias, sem falhar, independentemente de quem nele trabalha. O que é feito para girar vai girar, o que é feito para pular vai pular, o que é feito para dar emoções vai dar. Alguns vão se divertir, outros vão trabalhar, outros vão sobreviver... “Tenho sorte”, pensou seu Ataíde.

Já com Conceição não era bem assim. Na festa de 15 anos de Gustavinho chegou até a fazer um discurso que a todos fez chorar, dizendo da sua aceitação e agradecimento pela vida feliz de sua família, das compensações da vida, do amor que não faltava etç e tal, mas não desligava suas antenas das possibilidades. Tinha portas muito largas para a inclusão de filosofias, baratas ou caras, que de qualquer forma, ela mesma se encarregaria de por outras janelas despejá-las fora.
Nesse mesmo dia de festa, ela conversava com algumas amigas, assuntos bem distantes desse, que é tema dessa redação. Quem tem assunto grave em casa e já se conformou, faz transparecer mesmo com diversos outros temas, como é estruturado e confiante em Deus ou em si mesmo. Conceição era sim uma mulher segura. Perdera a mãe cedo na vida e o pai, já idoso, vivia com uma companheira que a tia, aquela das cartas comestíveis, foi quem ajeitou para que cuidasse dele na viúves e que acabou cuidando de muitas outras coisas. Com ele Conceição não podia contar como se conta com um pai, como se escuta de um pai e tudo mais. Ele já esquecia as coisas; piorava as coisas por conta disso. Nunca entendeu bem o transtorno do neto. Às vezes omitia, às vezes aumentava o problema, quando tentava explicar a amigos e vizinhos. Como criança, uma vez ficou muito tempo sem falar com a filha porque Gustavinho comera alguns selos raros de sua coleção.

Voltemos à sala e a conversa. Conceição conversava com as amigas, ria, falava do marido, dos filhos, da casa, mas tinha sempre outro sentido reflexo de acompanhar Ataíde por todos os cantos e sem sair do lugar. - Essas coisas de leis de compensação com as quais se beneficia alguém diante do infortúnio. Interrompeu a conversa para chamar a atenção de Ataíde que comia e oferecia aos colegas, o numero um da vela que acabara de apagar. Como um comandante que executa comandos em uma aeronave e exibe o painel para filhos de passageiros, precisa e doce, controlou a situação. Ela retirou a vela de suas mãos, limpou o canto de sua boca, passou um guardanapo na calça suja de maionese, passou os dedos entre os cabelos desgrudando-os do suor, enquanto, ao mesmo tempo conversava com os meninos e perguntava se estavam se divertindo. Fez tudo isso como ato corriqueiro, incluindo o fato de que reparou quando um dos coleguinhas correu contar à mãe que viu Gustavinho comendo vela.
Festas são como florestas: você pensa que está só ali, mas há sempre um ser te observando. Bem, devo me esforçar em concluir nesse parágrafo o que não consegui nos dois últimos: a conversa com as amigas. Entre as amigas, Ivete, que há algum tempo não via. Fez como que não tivesse visto, mas viu o detalhe que se passou, enquanto Conceição, de igual forma, interpretou uma despercebida, mas viu que a amiga tinha visto. Enfim, quando ia se aproximando da roda de amigas novamente, Ivete se antecipou a ela perguntando se estava tudo bem, se queria alguma ajuda na manutenção da festa e tal. Conceição percebendo intenção da amiga de indagar sobre Gustavinho, facilitou as coisas com uma pequena tragicomédia: - Ele sempre faz isso nos aniversários. Por isso nunca sobra o numero um para a próxima festa...

É muito bom quando se entra num assunto proibido por via das comédias, é como engraxar uns eixos de uma máquina de intricado mecanismo. Assim, logo já estavam falando mais sério, rindo às vezes, pausas, e sentadas no sofá, agora Conceição ouvia com muito interesse o que Ivete dizia. Ivete tinha a voz suave, dessas que não se usa para disputar nada, mas que ao mesmo tempo ganha disputas. Sorria quase o tempo todo, de se criar pequenos sulcos nas faces mesmo quando permanecia séria. Uma pessoa interessada em tudo. Foi ali que Conceição soube que “Pica” vinha do latim “Pega”, um pássaro do hemisfério norte que come tudo que encontra pela frente. Não foi direta, mas explicou da evolução das coisas, das pessoas, bichos. Como a realidade poderia ser compreendida a partir da religião, da ciência e da filosofia. Ponderava que o espírito das pessoas é que importava...

Naquela noite, Conceição foi dormir até mais pensativa e comentou com o Marido antes de apagar, se ele já tinha ouvido falar num tal pássaro comilão, - já que o sogro gostava bastante de aves e de tê-las em gaiolas – e se o espírito dos animais poderia ser mais digno que o das pessoas. Não obteve resposta, mas não fez caso, pois, ou marido já havia dormido, ou não sabia o que responder, ou, o que é o mais provável, simplesmente não respondeu, como é dado à maioria dos homens, que imaginam que são sempre retóricas as indagações das esposas.
Conceição passou a se encontrar mais vezes com Ivete, que sempre estava disponível e muito cortês, apesar do trabalho, da casa, da família, do marido. - Família e marido aqui separados, não se trata de uma redundância, mas uma observância deste narrador. Passou a freqüentar as reuniões que Ivete freqüentava e a se inteirar mais dos espíritas e a se doar mais aos seus centros.

(continua)

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